Miss e farmacêutica: conheça brasileira coroada a surda mais bonita do mundo
Thaisy Payo tem duas faculdades e, depois de perder a audição aos 9 meses, quer usar o reinado de Miss Surda Mundo para divulgar sua causa
Desde julho, o Brasil ganhou mais uma Miss Mundo. Pouca gente sabe, mas a paranaense Thaisy Payo juntou-se ao grupo de Ieda Maria Vargas e Marta Vasconcellos, que foram coroadas Miss Universo em 1963 e 1968, respectivamente, quando ganhou o título de Miss Surda Mundo 2013 (Miss Deaf World 2013).
Aos 25 anos, Thaisy deixou para trás outras 48 meninas e foi eleita a surda mais bonita do mundo. Junto com a mãe, a dona de casa Aparecida Payo, a irmã caçula Luana, e o namorado Leonardo Ulmann, ela passou uma temporada de 11 dias em Praga, capital da República Tcheca entre desfiles, sessões de fotos e jantares: tudo como manda o figurino em um concurso de Miss.
“Levei dez vestidos para Praga. Algumas lojas de Umuarama - cidade do interior do Paraná que fica muito próxima a Serra dos Dourados, distrito onde nasceu a Miss - me ofereceram e pude escolher quando cheguei lá”, disse em entrevista exclusiva durante visita ao Terra. Assim como o concurso de Miss convencional, as candidatas surdas também não podem ser casadas ou ter filhos, e precisam mostrar na passarela atributos além da beleza. São três desfiles com vestidos longos, um curto, biquíni, uma peça folclórica, que represente a cultura do país de origem, e uma apresentação de dança. Thaisy apresentou uma coreografia de frevo, ritmo que aprendeu em duas aulas antes do concurso. No palco, tudo adaptado de acordo com as necessidades das competidoras: o som alto emitia vibrações e luzes mudavam de intensidade para que elas soubessem quando a canção chegasse ao fim e para marcarem o ritmo.
A paranaense é a terceira brasileira a participar do concurso mundial e a primeira a levar o prêmio em 20 anos de concurso. Artista com certificado – Thaisy tem DRT, o registro profissional para trabalhar como atriz e modelo -, a conquista veio coroar um sonho de infância. “Desde criança, andava nas pontas do pés como se estivesse mesmo desfilando. Na minha escola eu também era a aluna que costumava desfilar e não tinha vergonha de nada”, lembra.
Orgulhosa como toda mãe de Miss, Dona Cida lembra que a filha gostava sempre de estar arrumada: “eram roupas simples de criança, mas sempre bonitinhas”. E, para manter a beleza em dia, Thaisy cuida dos cabelos e pele em casa, colocou implantes de silicone nos seios, não come gordura nem fritura, refrigerante também nem pensar, faz sessões de drenagem linfática, frequenta a academia para aulas de musculação três vezes por semana. “Não é só cuidado, é prazer também. Quando não tem um lugar para malhar, fico meio desesperada”, diz. Tudo isto para manter os 52 kg em 1,70m.
Desde que começou a se dedicar mais aos concursos, são cinco títulos conquistados: Rainha Expo Umuarama 2010, Princesa do Miss Umuarama 2010, Rainha Surda Brasileira 2010 disputado em Florianópolis, Miss Surda Brasil 2013 conquistado no Ceará e Miss Surda Mundo 2013, em Praga, na Europa.
Profissional e Miss
Mas mesmo com o sonho de trabalhar como modelo e atriz, os concursos só vieram depois que Thaisy terminou os estudos e se formou como a primeira farmacêutica surda do Brasil, em 2009. “Eu não poderia fazer nada que atrapalhasse meus estudos e nem poderia deixá-los para me dedicar a isso”, contou. A Miss tem também o curso de Letras e Libras como segunda faculdade e faz pós-graduação em Libras e Educação para Surdos.
Antes das passarelas, os estudos eram o protagonista da vida de Thaisy. Dos 5 aos 16 anos, ela tinha carga horário tripla, já que estudava de manhã em uma instituição filantrópica que é uma escola especializada para crianças e adolescentes surdos e, durante a tarde, frequentava uma escola particular convencional para ouvintes, como são chamadas as pessoas que têm a audição perfeita. “Minha mãe achava importante eu ter essa comunicação com a comunidade ouvinte também. Como naquela época não era obrigatório ter intérprete, tentava me comunicar pela oralidade, mostrava o que queria, apontava as coisas, fazia muita mímica”, lembra-se.
No meio disso tudo, tinham ainda as três sessões semanais de fonoaudióloga - prática imprescindível para que as cordas vocais não percam ainda mais a força e para que a pessoa consiga balbuciar as palavras e melhorar a técnica de leitura labial -, natação, inglês, curso de artesanato, bordado e por aí vai. “Eu participava mesmo da sociedade e isso ajudou muito no meu desenvolvimento”, conta.
Na escola, Thaisy sentava-se na frente e contava com a ajuda e paciência de professores e amigos para conseguir acompanhar as aulas. Mas mesmo assim, perdia grande parte do conteúdo quando eles se viravam para escrever na lousa, caminhavam pela sala ou por simples detalhes, como ter um bigode que tapasse os lábios, por exemplo. “Eu dizia: ‘filha, levanta a mão e bate palma para eles lembrarem que você está ali’. Sempre ensinei a não ter constrangimento e ela nunca teve”, conta a mãe, que fazia de tudo para a filha ter a vida mais parecida possível com as outras meninas da sua idade. Até comprar dezenas de papeis carbono para que uma amiga copiasse a lição e lhe desse o conteúdo depois a mãe tentou. “Ela sempre teve um anjo na sala de aula”, emociona-se Dona Cida enumerando um por um os nomes dos amigos de infância da filha.
Sem constrangimento
Durante a faculdade, foi justamente essa falta de constrangimento que garantiu que Thaisy pudesse concluir o curso de farmácia bioquímica. Já na matrícula, ela pediu um interprete de libras para acompanhá-las nas aulas – direito conquistado pelos surdos legalmente em 2002 -, mas, segundo ela, a instituição “enrolou” e, por dois meses, ela tinha que se esforçar para fazer apenas a leitura labial. Solução? “Todos os dias eu usava uma camiseta escrita ‘Eu necessito de um intérprete’”, lembra-se dando risada. E deu certo. Foram quatro anos de aulas em período integral sempre com uma interprete do lado. Para a entrevista, Thaisy veio acompanhada por Regiane Pereira, intérprete que a acompanha em seus compromissos de Miss na capital paulista.
Sem preconceito
Toda esta rotina atribulada em busca de garantir o desenvolvimento de Thaisy é apenas uma pequena parte do empenho incansável da família. “A consciência da gente fica cobrando incansavelmente o cuidado que temos que ter. Meu maior medo sempre foi alguém me falar que se eu tivesse feito de outro jeito, ela estaria melhor. Quando soube que ela tinha ficado surda, pensava em como desenvolver aquela criança para enfrentar o mundo”, conta Dona Cida.
Thaisy nasceu sem nenhuma deficiência, mas devido à intolerância à lactose, condição até então desconhecida dos médicos e da família, ela desenvolveu uma severa infecção intestinal pelo consumo de leite e foi tratada com um antibiótico chamado micina. Depois disso, foi diagnosticada com surdez aos 9 meses de vida. De acordo com a mãe, os médicos não informaram sobre o risco que o remédio traria, mas depois, em contato com outras famílias – sabe-se que pelo menos seis pessoas, três delas com idades de 13, 18 e 28 anos também ficaram surdas devido ao medicamento - que passaram pela mesma situação descobriu que poderia causar surdez e até cegueira.
Em 2014, Thaisy tem que entregar a faixa de Miss Surda Mundo, mas quer aproveitar seu reinado para conseguir trabalho. Há algumas semanas, ela se mudou para a casa da família do namorado em São Paulo para tentar despontar no mercado publicitário e artístico. “Quero conseguir trabalho na minha área para suprir minhas despesas, porque nesse país é difícil conseguir patrocínio”, conta.
Se para este mercado ter vontade, beleza, simpatia, medidas do corpo adequadas, ficar bem nas fotos e na TV são pré-requisitos, então qual a dificuldade? Pois o preconceito é um obstáculo diário gigante na vida da Miss. “Já me rejeitaram dizendo que eu não tinha altura, mas na verdade senti como um preconceito por ser surda, mas sou oralizada e tenho uma ótima comunicação verbal, então posso desenvolver qualquer trabalho normalmente”, diz.
Além da causa própria, a Miss batalha em paralelo para comunidade surda, para que a língua de libras chegue a mais pessoas facilitando a vida de todos e colocando os surdos mais perto da sociedade. “Precisamos ter com urgência escolas bilíngues e a libras (Língua Brasileira de Sinais) tem que ser disciplina na matriz curricular desde o ensino fundamental. Assim poderemos conquistar uma comunicação de igual para igual”.
A mãe compartilha da causa: “íamos aprender libras mesmo não gostando, igual muita gente não gosta de matemática”, diz. Este conhecimento é importante até mesmo para a família, já que a comunicação por sinais é difícil até para as próximas mais próximas como Dona Cida. “em casa, nos comunicamos com ela verbalmente porque sou muito devagar nas libras”, diz.